sexta-feira, 15 de maio de 2015

Kuvek Mendar - Parte 1


NOTA: Este texto foi escrito para introduzir à um amigo este personagem (ele iria jogar uma sessão apenas, acabou nem jogando) por isso a narração com observador ativo (você vê, você anda, você se sente...etc). Fui revisar o texto e agora ele está aumentando de tamanho, por isso vou colocar em duas partes.




Kuvek Mendar - "Como você chegou até aqui?" - Parte 1.




Quem diria... chuva. 
Chuva é a lembrança mais doce e dolorosa na sua vida, Kuvek Mendar: de todas as aventuras das quais você participou – seja de verdade ou apenas nos exageros de um bardo qualquer - escapar de Tungraesh[1] foi de certeza a mais real. Não, você não saiu de lá montado em uma mulher orc e empunhando uma espada mágica, como os bardos contam: Foi sofrido e angustiante ter toda escuridão, calor e umidade contra você em um lugar onde tudo quer te matar e, quando finalmente – a despeito da probabilidade baixíssima – você viu novamente o céu, ele não estava azul e sim cinzento de chuva.

Você é uma lenda viva: desconhecido para o cidadão comum e tido como morto pelas autoridades, em compensação é respeitado no submundo por ser o homem para qualquer tarefa, no geral aquelas que ninguém mais quer fazer. Os bardos cantam muito seus feitos: neles você é Kuvek de 10 anéis! – o destemido ladrão que recusou dez anéis raros de presente dos bardos (é mentira, foram apenas seis. Divertido é pensar que o líder da guilda deles tem a quantidade máxima permitida, que é nove), ou Kuvek Rei dos Orcs! (só por falar orkae? Aprender na prisão não é tão glorioso como conquistar os reinos orcs sozinho, montado em uma mulher orc e empunhando uma espada mágica, como dizem...), Kuvek de Mil Faces (quase verdade. Tantos usam seu nome que na maioria das vezes não vale a pena nem se apresentar...) ou ainda Kuvek o Falso Amante (essa é mentira! Onde já se viu seduzir mãe e três filhas para descobrir a localização de um tesouro de família? Você as seduziria por muito menos. O segredo era guardado pela velha avó, isso sim... mas algumas verdades ficam melhores se mantidas para si). Homens de menos sorte se fazem passar por você nas estalagens para tentar ganhar a vida e seduzir as garçonetes – garçonetes estas que sonham com o dia que você invadirá seus quartos durante a noite, com sua “espada mágica”. Pessoas desesperadas por uma solução improvável para seus problemas procuram por você em todas as tavernas. Guardas temem por suas vidas na escuridão da noite. Garotos pobres nos becos de Torendil sonham em ser você um dia.

Você abriria mão das histórias facilmente para não estar onde está agora, seguindo uma fila de homens amarrados com cordas - na chuva - para algum lugar e destino que você ignora. Na verdade esta é sua missão, e há lógica no fato de ser levado até lá e instruído sobre algo ao invés de os seguir e ser morto por um batedor. A instrução pareceu muito sólida quando você discutia a missão com seu contratante... você só esqueceu-se de ponderar sobre a parte da caminhada em fila, amarrado, ou a parte da pouca comida (depois de Tungraesh não é qualquer fome que te abate, mas esta está chegando perto) ou ainda a parte dos chutes e das pauladas – apesar de fazer o possível para cooperar, apanhando o mínimo necessário no processo, é sagrado que os prisioneiros vão ser acordados com um chute. Ou dois. Ou cinco.

Uma pedra do tamanho de uma cereja é sua única posse. De um azul profundo, lhe foi entregue em um movimento engenhoso depois que você foi capturado: você não sabe como, mas um carcereiro distribuía laranjas para os presos antes de a viagem começar e a pedra estava dentro da sua. Era suposto você receber algo para levar escondido na viagem, você só não sabia o que seria. Os Ciraxaed[2] o “capturaram” na cidade de Barril e se tu tivesse a posse da pedra nesta altura, certamente a achariam: você passou por, pelo menos, três revistas nos oito dias que esteve encarcerado. Já os orcs são mais estúpidos e não ficam revistando os prisioneiros, só lhes interessa terminar a viagem para ganhar sua recompensa.

Nenhum prisioneiro ou orc sabe que você fala orkae, e neste tempo de viagem você tem ouvido coisas que parecem dar uma pista do que está por vir: algo sobre “O Trabalho” (é assim que os orcs se referem... os homens para fazer “o trabalho”) e a guerra. Certa vez você ouviu uma conversa onde um orc – Trarru – dizia que “era muito mais divertido no começo, agora não há nada para pilhar”. Você contou dezesseis prisioneiros, todos homens robustos com caras de agricultores, ferreiros e pastores, mas nenhuma chama de batalha nos olhos, escoltados por vinte e cinco orcs – sete deles muito bem armados enquanto o resto puxa carros com comida e ajuda na escolta dos prisioneiros, munidos de não muito mais do que clavas e pedaços de pau. O terreno é plano e vocês caminham pela estrada entre Barril e Haigahor. O rio Torendas passa a mais ou menos um quilômetro à sua esquerda, e em ambas as margens vê-se fumaça subindo de destroços de casas, campos queimados e árvores derrubadas. Aqui e ali, um corpo ou uma carcaça de animal. O vento vem frio das montanhas durante o dia, congelando durante a noite, e a chuva de que tanto gosta não ajuda em nada nessas horas. Alguns prisioneiros começam a tossir já no segundo dia de caminhada, o que lhes rende mais uma carga de pancada.

No terceiro dia de caminhada o prisioneiro da sua frente falou com você. “Um recado”, disse ele: “Ao fim da sua jornada ou se sua vida correr perigo, quebre aquilo de mais valioso que você tiver por perto”. Veher era seu nome, um homem de feições simples e sofridas, mais um trabalhador sem gosto pela batalha vítima da crueldade da guerra. Segundo ele um homem, após ele ser capturado, daria muito dinheiro para a família dele se esta mensagem fosse transmitida fielmente, embora ele mesmo não soubesse o que significava.
- Seja lá o que for, não custava nada falar – ele lhe disse.
Você não entende o por quê das informações virem até você de forma fragmentada. "Era muito mais fácil ter dito tudo logo. Malditos elfos." - você pensa.
Você nota que ele não era originalmente o preso da sua frente – você é o décimo primeiro da fila – e Veher lhe conta que vem se esforçando para chegar perto de você e trocando de posição com os presos durante a noite. Um grande risco, diga-se de passagem: a noite os homens são desamarrados para dormir, mas serão mortos pelos sentinelas no caso de se levantarem. “Trocávamos de lugar rastejando, muito devagar para parecer movimentos de sono. Foi sorte todos cooperarem”.
Veher é a única coisa próxima de um aliado que você tem: a comunicação tem que ser baixa e breve, conversas entre os presos pode render umas pauladas. Lavrador, de família pobre, foi preso pelos Ciraxaed sem resistência – “Quem tenta resistir, morre” – disse ele, certa vez. Não é a primeira viagem desta, você soube, e nela sempre estão homens adultos. “Mulher e duas filhas, duas vacas e um moinho, é tudo que eu tenho.” – disse ele. “E você?” – após pensar por um ou dois minutos e ensaiar um “Não muito...”, um orc se aproximou demais e Veher acabou ficando sem resposta.

A viagem vem sendo lenta e árdua. Alguns dos homens – incluindo dois dos mais velhos – começam a tossir bastante, e a alimentação não passa de pão e cenoura de dia, água e uma sopa, à noite, que só um orc poderia fazer. Com o passar dos dias a caminhada torna-se ainda mais puxada com o cansaço começando a se acumular nos músculos.

No décimo primeiro dia de viagem, a tragédia: alguns prisioneiros levados ao limite incitam uma revolta durante a noite: atacam um dos sentinelas, levando-o ao chão e matando-o a pedradas. Cinco dos homens participaram do levante (os outros, incluindo você, dormiam. Na confusão você acordou, mas seu instinto fez com que continuasse deitado) e, após matarem o orc, tentaram correr na escuridão. Cansados, doloridos e mal nutridos, não tiveram muita chance contra orcs bem alimentados. Em menos de 10 minutos já haviam sido alcançados e mortos – Veher era um deles.

Os dias passam mais lentamente agora: os orcs, zangados, tentam imprimir um ritmo maior à marcha. Sem Veher, não há cochichos para se distrair, apesar de nenhum cochicho ser mais tolerado. O mau humor dos orcs é evidente mas os maus tratos aos prisioneiros diminuíram. “Já perdemos carga, se chegarmos com menos carga não tem ouro. Evitem bater nos prisioneiros, eles vão ter a cota de dor deles em breve!” – Gruthag, líder do bando, gritou para os outros orcs na manhã seguinte à revolta. As caras fechadas e os rosnados dos orcs para os prisioneiros aumentaram, você sente suas pernas fraquejando. Seu estômago parou de roncar – deve ter desistido, ou morrido. Quando - após vinte e dois dias se arrastando em uma viagem que demoraria dez - você chega ao seu destino, a visão do lugar o faz pensar: “às vezes era melhor continuar caminhando...”.







[1] Tungraesh é uma sentença de morte: sabe-se que é um labirinto construído sob as montanhas, fundo dentro da terra, habitado por monstros e animais amaldiçoados Dizem que lá há uma cidade, mas ninguém nunca foi e voltou pra dizer se há mesmo. Torendil (maior e mais próspero reino humano de Gameda, que é como os homens chamam este continente) possui um forte militar nos pés de uma cordilheira que guarda a única entrada conhecida para o lugar. Quando um prisioneiro é sentenciado à morte, ele ganha um pão, uma faca e uma tocha acesa e é empurrado porta adentro em direção a Tungraesh. Os que tentam voltar ao portão e pedir clemência são alvejados. Todos sabem disso, mas a maioria tenta. Escapar de uma sentença de morte indica favorecimento divino, logo os que o fazem não podem ser sentenciados à morte novamente em Torendil (você é um dos raríssimos casos documentados...).
[2] Literalmente, homens de Cirax. Cirax é o flagelo do mundo, deus gerador de tudo que é mau. Longa história, única coisa que você sabe direito é que os Ciraxaed declararam guerra em Torendil, marcharam na capital e com um exército monstruoso de monstros (a é...) tomaram a cidade. Agora a guerra está em toda parte.


domingo, 16 de junho de 2013

As Oito Faces

O jogo corria bem...
Uma mesa redonda de poker estava montada, com seis jogadores e duas cadeiras vazias. Seis versões dele mesmo, sentadas à mesa, cada uma com cinco cartas na mão. O Racional olhava seus companheiros com ar impassível, matemático, calculista. Já sabia que o Irônico tinha uma mão ruim – só pela risadinha e a forma como jogara as cartas, viradas pra baixo, à sua frente. O Melancólico olhou suas cartas e fez uma expressão desolada, mas aquilo não significava nada: mesmo que fosse a melhor mão possível, ainda sim não o animaria. O Pessimista – sentado ao lado do Melancólico – passou a mão sem olhar as cartas: sabia que iria perder. O Emotivo olhou sua mão e não conseguiu conter um risinho, entregando assim o fato de ter alguma coisa boa nela. O último a receber fora o Volátil e, seguindo regras próprias, seria também o primeiro a pedir.
O Volátil olhou, impassível, para o Racional, entortou a boca e pôs as cartas na mesa:
 - Duas...
O Racional jogou duas cartas para o Volátil, tentando estudar sua expressão: de todos na mesa era o que lhe representava maior ameaça. Sabia que o Volátil era tão inteligente e astuto quanto ele próprio era, sua única desvantagem era ser estourado demais. Ele olhou as cartas e colocou-as de volta na mesa, impassível. “Não foi dessa vez...” pensou o Racional.
O Emotivo passou a vez, ainda com uma cara de felicidade disfarçada. O Pessimista só olhava a partida enquanto o Melancólico pedia três – ou, ao menos era o que parecia.
 - O que?
 - Três – disse timidamente o Melancólico, meio para si.
 - Como? Três?
O Racional jogou três cartas na frente do Melancólico, que olhou as cartas e continuou triste. O Irônico deu um risinho de canto de boca e disse:
 - Cinco.
 - Cinco? – disse o Racional, com uma expressão incrédula – Você sabe as chances que você tem de puxar uma mão boa? – e olhou as próprias cartas, para calcular por alto as chances.
 - CINCO?? – Berrou o Volátil, levantando-se de uma vez e quase derrubando as próprias fichas e as fichas arrumadas por ordem de cor e tamanho do Racional – Pára de brincadeira! A mão está ruim? Passa a mão, não fica atrasando o jogo!
 - Amigo... se acalme. Eu estou calmo, você está calmo?
Não fosse a intervenção do Racional e do Emotivo, Volátil teria pulado no pescoço do Irônico ali mesmo – Acalme-se, é o jogo, faz parte do jogo – disse Racional, segurando o Volátil tempo o suficiente para ele se acalmar. Ele sentou-se, ainda pensando se deveria voar no Irônico para tirar-lhe o sorriso de deboche da cara ou não.
 - Eu vou pegar duas cartas. – disse o Racional, quando os ânimos esfriaram.
Pegou as cartas e as olhou: Um par de valetes. Fantástico! Com os dois setes da mão daria uma mão razoável, talvez perdesse para o Emotivo, que ainda ria para si próprio, mas ainda sim eram dois pares altos e valia a pena arriscar. Colocou a aposta na mesa, seguido do Volátil – ainda neutro frente o jogo. O Pessimista baixou a cabeça enquanto o Emotivo aumentava a aposta de trinta para quarenta. - "Mal sinal, a mão dele deve mesmo ser boa..." – pensou o Racional.
O Melancólico estava distraído, pensando em algo distante, tanto que o Racional pigarreou de propósito enquanto Volátil engolia em seco. Alarmado, ele empurrou trinta em fichas. – Quarenta. – disse o Racional, enquanto Volátil colocava a mão no rosto em sinal de desagrado. Rapidamente ele jogou uma ficha de dez no bolo.
 - Quarenta mais...bah, só tenho vinte aqui. Pessimista, me empresta cem. – disse o Irônico.
 - COMO ASSIM “EMPRESTA”!? NÃO PODE EMPRESTAR! – berrou de novo o Volátil enquanto o Pessimista dizia “Cara...isso não vai dar certo...”
 - Não pode emprestar. – Disse calmamente o Racional.
 - Ok...ok...ponho esses vinte aqui, to cansado deste jogo mesmo.
O Racional olhou as próprias cartas e cobriu os quarenta mais vinte. Olhou para o Volátil, que olhou de volta – cada qual tentando pensar mais rápido que o outro – enquanto este cobria a aposta também. O Melancólico cobriu a diferença e o Emotivo mal conteve o riso quando baixou as cartas – fora da sua vez:
 - Par de setes e par de três! – disse, triunfante. – e tem esse Ás aqui!
O Volátil – subitamente acometido de bom humor – deu uma gargalhada. O Racional sorriu, colocando as cartas na mesa:
 - Par de setes e par de valetes... e, pra constar, eu também tenho um Ás. – disse, para desespero do Emotivo que começou a lacrimejar. O Irônico olhou para o Racional com uma cara espantada mas feliz, que se traduzia em algo do tipo: “Olha, você também sabe ser irônico!” – E você, Melancólico?
 - Ah... eu tenho do nove ao valete de copas, e depois tenho esse dois e essa dama de paus... 
 - Cara... você não tem nada. – disse o Volátil, calmamente.
 - É... eu sei...
 - NÃO, NÃO SABE! ENTÃO PORQUE CONTINUOU SUBINDO AS APOSTAS E TUDO O MAIS!? – Algumas fichas de cinquenta da pilha milimetricamente construída do Racional pularam quando o Volátil bateu na mesa
 - Não fala assim com ele! – disse o Emotivo, emotivo.
 - Engraçado – interveio o Irônico, em um tom irritante – sabe com quem você está parecendo, não sabe?
Encararam-se por alguns segundos, até que o Volátil desviou o olhar da cara zombeteira do outro, dizendo:
 - Não faço ideia. – mas ele sabia, todos sabiam. O Pessimista levantou a cabeça por um instante e tornou a baixar, o Volátil sentou-se enquanto o Racional desfez, nervosamente, uma pilha de fichas para construí-la de novo. O Emotivo e o Melancólico foram os únicos a olhar através da porta que dava para a cozinha, para a porta da despensa que estava trancada. Fez-se dez segundos de silêncio, até que o Volátil disse:
 - Bom, chega. Trinca de oito. Ninguém tem nenhuma objeção, não é? – disse o Volátil, já olhando as fichas.
 - Bah, como assim? – disse o Racional.
 - É... daí complica mesmo. Eu só tenho cincos... – disse o Irônico, colocando as cartas na mesa -... quatro deles! – falou, sorrindo zombeteiramente.
 - AH VELHO, COMO ASSIM!? - falaram alto, ao mesmo tempo, o Racional e o Volátil, enquanto o Irônico puxava as fichas para si.
 - Você roubou! – falou acusadoramente o Volátil.
 - É matematicamente possível que ele tenha puxado quatro cincos em cinco cartas – disse, categoricamente, o Racional.
 - E logo quando eu ia sair do jogo hein! Que ironia! – zombou o Irônico. O Emotivo achou interessante a virada na mesa e expressou-se com um tímido, mas sincero, “Parabéns”. O Volátil entortou a boca em um risinho esquisito enquanto o resto do rosto demonstrava irritação, dizendo em uma voz fina: “Que ironia”.
 Decidiram dar uma pausa, e foi nesse momento que o Melancólico falou:
 - Não era bom darmos uma olhada nele? – apontando a despensa.
 - Eu concordo – disse o Emotivo – vocês não planejam deixar ele lá, né?
Os outros quatro na mesa se olharam, avaliando a situação.
 - Pode ser perigoso – disse o Racional.
 - Ele quase matou todos nós, não acho boa ideia – disse o Volátil.
 - Foi o jeito dele de reagir... começou o Melancólico, mas calou-se.
 - ... à morte do Otimista – completou o Pessimista, em tom duro. Todos olharam pra ele, estranhando aquela intervenção muito pouco habitual.
 - Não fala assim... ainda não superei... – disse o Emotivo, e abraçou-se ao Melancólico, os dois chorando baixo.
 - Que é, gente? – disse o Pessimista – Aconteceu, temos que encarar os fatos.
 - Tudo bem, mas ainda sim não dá o direito a ninguém de arriscar todos! – interveio o Volátil.
 - É... mas ainda sim, não vamos deixá-lo lá sem ao menos ver se está bem – falou o Irônico.
O acontecido tinha sido trágico: o Otimista havia sido morto covardemente... primeiro, envenenado ao longo do tempo. Quando questionavam o fato de ele estar morrendo, ele sempre respondia: “Morrendo nada!” e sorria. Ele estava demorando muito a morrer então a assassina – sim, uma mulher, talvez com mais cúmplices – resolveu usar métodos mais diretos: três tiros nas costas e treze facadas pelo corpo, após isso ela atirou o Otimista – ainda vivo – de um carro em movimento, barranco abaixo. Os sete foram reconhecer o corpo, cheios de pesar. As coisas tornaram-se feias mesmo quando, ao contrário da expectativa geral, o Otimista exibia uma cara post-mortem de consternação, espanto e dor na mesa do legista. Significava que ele havia morrido mesmo e aquilo fora a gota d’água para o Furioso, o mais descontrolado, vingativo e destrutivo dos oito. Por onde andou deixou um rastro de desolação e escombros enquanto voltava para casa, quase a destruindo quando lá chegou. Na tentativa de detê-lo, os outros seis partiram para controlá-lo e quase morreram no processo, tiveram sorte de a casa não vir abaixo. O Volátil ainda tinha o olho um pouco roxo, e reclamava de dores todos os dias – embora todos soubessem ser um exagero. O Pessimista trazia uma cicatriz de corte no braço que, antes mesmo de ficar curada, já havia sido profetizada por ele. O Emotivo tentou separar todos e passou dois dias desmaiado no sofá.
Levantaram-se, ainda discutindo: O Racional e o Volátil de má vontade, o Emotivo na frente, para pegar a chave. Ao passar pelas cartas do Pessimista, o Racional olhou a mão discretamente: “Full House de quatros e reis...” não bateria o Irônico, mas não era uma mão que ele próprio teria passado. “Ele não muda nunca...” – pensou. Andaram até a despensa e abriram a porta trancada com duas voltas de chave e cadeado. Lá dentro estava escuro, e todos sentiram suas narinas serem invadidas pelo cheiro de suor. Dois globos brilhantes com orbes negras encaravam, de dentro da escuridão, os seis parados na porta: o Furioso estava amarrado em uma cadeira, amordaçado, com mais de uma corda e nós em diferentes pontos. Tudo da despensa havia sido retirado para que ele não se ferisse ao se debater, ou ao tentar escapar. Muitas vezes ele tentava, e os outros seis temiam – e tremiam - mas até agora os nós cirurgicamente dados pelo Racional não haviam cedido. Mesmo com tudo parecendo seguro, ninguém se atreveu a passar do batente.
 - Furioso, você está bem? – perguntou, cautelosamente, o Emotivo.
 - ...
 - Só faz que não com a cabeça – disse o Pessimista.
 - ...
 - Como você pode dizer que a resposta será “não?” Deixe de ser tendencioso! Quem mania! – falou abruptamente o Volátil.
 - Desculpe Volátil... mas ele está amarrado. Seria lógico que não se sentisse “bem” – disse o Racional, com ares de quem tinha razão. Brincava com uma moeda entre os dedos enquanto falava, certo de que estava certo – e, na maioria das vezes, estava mesmo.
Mesmo com a discussão à porta, Furioso não fizera movimento algum. Estava estático, os músculos se pressionando contra as cordas. Se fazia força, não dava pra saber: parecia estar relaxado, e mesmo assim havia tensão em seu olhar. Era consenso geral que permaneceria ali, pois embora só fosse um ele era facilmente mais forte, rápido e imprevisível que os outros.
 - Bem, se continuar sem se debater nós podemos deixar você sair... – falou o Melancólico – eu fico triste com essa situação...
 Sentiram, naquele momento, o olhar penetrante dele. “É o mais forte de nós, mas sem o Otimista para controlá-lo, é força desperdiçada... mais um perigo que propriamente útil...mas ainda sim o mais capaz...” – pensou o Racional.
 - Bom...vou fazer um lanche. Vou fazer um sanduíche pra ele também, se alguém se dispuser a... – falou o Emotivo com um sorriso esperançoso na voz, só para ser interrompido bruscamente pelo Volátil:
 - MAS QUE IDEIA! Vai você lá!
Começou uma discussão acalorada e um empurra-empurra, até que um barulho agudo interrompeu a fala de todos... e outro, e outro, cada vez menores e distantes, vindo de dentro da despensa. A moeda com a qual o Racional brincava caiu, quicando na direção do Furioso até bater na perna de madeira, rodando parada sobre a própria borda até parar completamente ao lado do pé da cadeira. A coroa de dez centavos ficou ali, encarando o Furioso que olhava para baixo apenas com os olhos, até que este levantou os olhos e encontrou os olhos do Racional.
 - Não vais pegar a moeda? – perguntou o Pessimista.
 - Não precisa – respondeu o Racional, ainda olhando nos olhos do Furioso – mesmo ele não conseguirá cortar essas cordas com uma moeda de dez centavos. Anda, vamos comer algo e continuar o jogo.
E fechou a porta, ainda olhando nos olhos do irmão amarrado, sem quebrar o contato até o último segundo. Havia entendimento no olhar de ambos.



sábado, 15 de junho de 2013

Resposta quando indagado sobre o conteúdo dos textos aqui postados e de onde tiro inspiração:

Saída da alma é a inspiração
Breve, rápida, seca em sua forma
O coração de quem a sente, a torna
Em obra, feita, material em sua feição

Seja um texto curto de fantasia,
Uma narrativa carregada de paixão,
Brigas, lutas, caos e confusão
Ou mesmo formatadas poesias

Vem de dentro, daqui, da mente
Para ficar exposta, à vista
Do apreciador da arte, inocente

Que ignorante em sua pose elitista
Mal sabe, ao ver a obra imponente
Que a maioria ficou no artista...

domingo, 5 de maio de 2013

Visualização X descrição


"O ladrão corre pela floresta, passos rápidos, fugindo do urso. A mão agarra fortemente o cristal jade enquanto o chão treme conforme o perseguidor se aproxima.
- Eu sigo ziguezagueando pelas árvores para despista-lo! Você fez o urso com o dobro do tamanho de um urso normal, não venha me dizer que ele também é ninja!

O jogador aponta acusadoramente o mestre. Todos riem.

- Você continua correndo e ziguezagueando, na sua frente tem um tronco de um velho carvalho caído bem ao lado de outro velho carvalho em pé.
- Ok, eu pulo o carvalho caído!

-Ok, você pula o carvalho."


Nesta hora, amigos, um calafrio percorre a espinha de todo bom mestre. Que os mestres adoram carvalhos, isto é uma unanimidade. Mas será que todos já viram um carvalho? Ainda mais um velho carvalho?
Carvalhos podem ser inúmeros (600 espécies segundo a Wikipédia) - mas os mestres adoram o carvalho que cresce e fica velho e imponente, como este, da floresta de Sherwood na Grã-Bretanha:




Imagine este carvalho deitado, caído. Conseguiu? Imagine o ladrão pulando por cima deste carvalho. Pois...haja força nas pernas, amigo!


Não é culpa do mestre, ou dos jogadores...mas quantas vezes, no nosso dia-a-dia, ouvimos coisas e as imaginamos, sem nunca as ter visto de fato?
Uma shamshir, por exemplo: é uma espada oriental, de origem otomana, com empunhadura de madeira ou marfim, geralmente ornamentada. Feita de aço, sua lâmina curva parece-se com a da cimitarra, mas a angulação da lâmina pode chegar a espetaculares 35 graus. Bem...você já consegue imaginar a espada, caro leitor, mas é diferente imaginar a espada seguindo a descrição, ou ouvir o nome após vê-la:

Esta é a shamshir. Um pouco diferente do que você imaginou, aposto. Primeiro que minha descrição foi pobre em detalhes - esqueci a bainha, por exemplo - e depois, temos todos concepção diferente de como são as coisas.

Por isso, caro amigo mestre: nem tudo que você descreve, é o que seus amigos vêem. Para já, tente perceber se eles realmente entenderam o que você quis dizer. Pelo incrível que pareça, a maioria das confusões pelas quais passei em sessões de RPG foi quanto ao senso de direção: as vezes meus colegas se confundiam com esquerda/direita, não porque não sabiam diferenciar uma de outra, mas porque imaginar a cena - muitas vezes com correrias, perseguição, corredores que se bifurcam e caminhos por onde se vai e volta - pode ficar mesmo confuso. Se algum jogador quiser dar uma de esperto, tipo "não, deixa eu ir desenhando..." aproveite a deixa e pergunte: "Seu personagem tem papel? Tinta?". Você enriquece o jogo e seu colega não esquecerá de comprar esses materiais na próxima cidade. Se você planeja descrever coisas que, porventura, talvez seus amigos não tenham visto em parte alguma, considere imprimir uma figura ou mostrar-lhes mesmo na tela do computador (mas continue a sessão, não aproveite para entrar no Facebook). Para mestrar certos ambientes, inclusive, aproveite para fugir da rotina: se a sessão se passará em uma floresta na sua maior parte, combine de realizá-la em um parque - cada um leva salgadinhos, refrigerantes, sucos...já vira pique-nique. A maioria dos parques em grandes cidades - como o Ibirapuera, em São Paulo, ou o Jardim Botânico, no Rio, possui infraestrutura para acomoda-los bem: banheiros, lanchonetes, mesas onde se sentar. Você joga RPG, passa uma tarde com os amigos e ainda sai de casa!
E se seu amigo, que interpreta o ladrão, tentar pular uma árvore, a polêmica de qual o seu tamanho e se ele consegue ou não pode terminar com um simples "A árvore parece-se com aquela ali!"




quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Mestre de jogo e o erro das narrações brutais.



Amigos[as], escrevi o texto abaixo a respeito de escritores e aí me apercebi de que ele também pode ser aplicado aos mestre de jogo e ao cotidiano das suas sessões.
Quem quiser me brindar com uma análise/crítica nos comentários, por favor se sinta à vontade.
Até.
O Segundo.


O artista, mais ainda o escritor, é responsável pelas imagens mentais que gera, na mente do espectador/leitor? Penso que sim. A responsabilidade é dele.
Lendo o capítulo “Vinho e água” em “O Temor do Sábio” (“A Crônica do Matador do Rei – O Segundo Dia”, de Patrick Rothfuss), nos deparamos com cenas fortes, mas onde as piores coisas não foram ditas pelo autor: ele deixou de lado a brutalidade comum em muitas obras que se pretendem “adultas”[1] e, sabendo que o leitor tem sua própria inteligência e perspicácia, deixou a este último a tarefa desnecessária de visualizar – se o quiser ou necessitar – as atrocidades cometida pelos vilões, no capítulo em questão. Se o leitor preferir (como a maioria das mentes sadias o farão), não cultivará os quadros mentais dos sofrimentos que o próprio autor preferiu não narrar e ficará com “a vitória do herói” (para simplificar).
Saber fazer isso, quando se compõe ou escreve é uma bela arte. Saber ficar aquém da fronteira sul da natureza criminosa humana e de suas manifestações (onde só há a crueldade e a perversão) e além da fronteira norte da nossa ingenuidade (como se não houvesse o mal, neste mundo).
A maioria das séries televisivas[2] e obras literárias atuais vão para o caminho mais fácil: chocar o máximo possível, pelas imagens e sons, pela narrativa crua e sangrenta e se autodenominarem “adultas”.
O caminho mais difícil é o escolhido por Rothfuss e exige mais inteligência e mais sensibilidade, tanto de quem escreve quanto de quem lê.



[1] O que me faz pensar em Jesus: “Não entrareis no Reino dos Céus se não vos fizerdes como as crianças”...
[2] “Jogos Mortais”, “Dexter”...

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Experiência com a morte.


 


Kä’lin ainda sentia o coração em quase completo descompasso; a pele exsudava em um frio de mármore, mas o sangue quase fervia, em algum lugar no mais profundo do seu corpo magro de meio-elfo, acostumado às privações de toda ordem.
Meu deus... O que é este lugar?!... A mente regurgitava para a alma, a pergunta incômoda; a única pergunta possível, a única coisa que uma mente sã poderia formular, após aquela jornada. E fora apenas o primeiro crepúsculo, a primeira noite; ainda haveria outras quatrocentas e dez.
Kä’lim recordava, agora (enquanto, trêmula, sua mão esquerda segurava o largo círculo de chumbo fixo na porta de madeira velha e robusta) o sorriso largo, duro, frio e sarcástico que Zentarödus, seu mentor e mestre, lhe lançara na face, quando disse que queria passar pelo teste de Maltrräuzen... Ainda recordava o breve e decisivo colóquio com o qual o ancião lhe vaticinara o risco que correria; fora a conversa que lhes separara os destinos:
– Você ainda é muito imaturo. Vai enlouquecer. A Ordem não te permitirá tal insensatez. Muitos outros, mais maduros, sábios e fortes do que você, macularam partes da alma, naquele lugar. Clérigos da paz, de lá saíram descrendo em Deus e, os do amor, apegados às sementes de um ódio cego e desmotivado. Paladinos, dali fugiram espavoridos, com olhares vazios e corações secos, sem um grama de fé verdadeira. Magos perderam o senhorio sobre seus dons anímicos e terminaram ensandecidos, fantoches, nas mãos habilidosas dos arguimagos do reino dos mortos. Druidas dali partiram, em revolta contra aquilo que consideravam a pedra angular do universo e o centro da espiral de toda a sua filosofia e ética: o dogma da neutralidade... Só os muito experimentados, dentre os teus irmãos de culto, conseguem passar pelo teste. E quando digo “passar”, digo sobreviver com alguma sanidade, pois os que eventualmente saem com vida, ou não são mais os mesmos ou não seguem mais à Morte.
O venerando tutor fizera uma breve pausa; depois, prosseguira:
Pássaros não cantam, nos arredores de Maltrräuzen. Nenhum dos grandes felídeos caça ali; nem tigres da noite, nem leões do dia. Nenhum dos canídeos caça ali; nem os lobos do frio, nem os chacais das terras quentes. Nenhuma das víboras vai até lá; nem a mamba-negra nem a serpente-real. Nenhum dragão caminha pelas ruínas de Maltrräuzen...
O velho aprumara a coluna, cerrara os olhos e finalizara:
O que você quer, Kä’lim é apenas um laivo da pulsão de morte que há em você e que vibra bem mais do que na maioria dos viventes e até do que nos seus próprios pares na crença. O que você quer é um encontro com a própria morte. E o pior: não com a sua morte, mas com a de milhares de vítimas da crueldade, da morbidez, das sevícias e da bestialidade humanas. O que você quer, está – acredite em mim – muito acima de suas forças espirituais. Você não sabe o que pede e eu não lhe darei permissão. E mais: se você insistir, comunicarei ao Conselho que você não é mais meu discípulo – e creia-me: isto me causará imensa dor emocional e algum considerável prejuízo psíquico. E me oporei ao teu pedido, com toda a veemência de minha alma; e advogarei a proibição, com o máximo da pouca verve que possuo.
– Então, mestre – dissera após um tempo intervalo – este é o fim de nossa estrada conjunta. Porque, na próxima cheia da lua menor, apresentarei minha rogativa ao Conselho, com ou sem a vossa bênção.
O velho ancião, a quem ele julgara um poço insondável do equilíbrio perfeito, estremeceu por mais do que por um mínimo instante e de um modo quase imperceptível. Suas mãos se fecharam, na flor de lótus; seus olhos cerraram-se; sua boca contraiu-se, num ríctus que nunca vislumbrara e ele disse as últimas palavras de um mestre a um aprendiz:
– Então é o fim. Não sou mais seu mestre. A morte é sua mestra, agora... Mas não da forma como eu ou você desejaríamos. Ou melhor, com eu não o desejaria.”
Nunca mais vira seu mestre. Ao contrário do que prometera, seu mentor evitara o conclave do Conselho; não foram ouvidos discursos de mau augúrio, nem oposição pública. Como sempre, seu mestre escolhera o caminho da discrição e (ao feitio da morte) agira na sombra: através de uma mesma carta (copiada trinta e três vezes), se dirigira a cada um dos anciãos e lhes recomendara (melhor seria dizer que suplicara) fosse vedado ao ex-discípulo a empreitada que o moço requestava.
Fora em vão, o esforço de seu mentor. O Conselho, após ouvir o candidato, aquiescera ao pedido, sem muitas exigências e sem qualquer admoestação. Este último detalhe, esta ausência de conselhos – depois da ênfase do cáustico prognóstico de Zentarödus – foi o que deu a Kä’lim o primeiro relance do pensamento que agora lhe vinha, à mente, com insistência. Talve eu não esteja pronto para este horror...
No compasso dessa constatação, o jovem Clérigo da Morte não pôde evitar o pensamento da fuga imediata, mas recordou-se de uma das regras do teste: ao redor das ruínas, seus irmãos de credo esperavam pela sua covardia e desistência; podia ver-lhes, à mão, a foice de prata escura e o punhal de ouro vermelho...
Não! Se for morrer, morrerei aqui dentro. Disse, com toda a força de alma que pôde reunir. Mas sabia que era um juramento débil, como faca de vidro.
Num esforço incomum, afrouxou a mão, em torno do chumbo enrugado da maçaneta redonda; o sangue voltou a correr pela extremidade dos dedos, num formigamento ligeiro.
A morte nunca lhe parecera tão assustadora. Revia, agora, as cenas daquele dia. Os corredores vazios, envoltos na escuridão da dor; espíritos vagavam por todo o lugar, gritando seu desespero de décadas; antigos algozes e vítimas invertiam os papéis, torturando-se, incessantemente, entre gritos de desvario e gargalhadas de riso ensandecido. Rios de sangue – realidades aferíveis, no plano dos mortos – inundavam as antigas câmaras de tortura, onde pulsava um amálgama de formas-pensamento, espíritos e construções psíquicas oriundas de mentes dilaceradas por ódio e crueldade. Havia ambientes para os quais sequer conseguira olhar; mas ouvira (e ouvia...), de dentro deles, como se de um fosso ocupado por milhares de mortos-vivos, súplicas de socorro tão lancinantes que deles fugira, como nunca fugira de nada, em vida. Nas salas onde outrora se executavam os prisioneiros (mediante veneno em gás), podia ver, ainda que por um só lance de olhos, o constante repetir das execuções, com crianças sendo pisoteadas pelos adultos, enquanto todos buscavam alguma saída; mas sem sucesso: findavam-se todos exauridos, o corpo todo contraído contra si próprio, até se quebrarem os ossos; todos os orifícios expulsando todas as secreções e excrementos que um corpo alquebrado, torturado, vilipendiado e faminto poderia produzir. E não era só: passada a primeira execução grupal, outros prisioneiros eram obrigados a limpar a câmara, retirando os cadáveres e limpando fezes, urina, vômito e sangue; os corpos dos mortos estavam tão achegados uns aos outros, tão retorcidos e tão contraídos que era preciso amputar-lhes membros (no todo ou em partes) ou separá-los, a cabo de lança... A cada segundo, vindo de um canto escuro qualquer, as mesmas gargalhadas desumanas, bestializadas... Os mesmo choros excruciantes... Os mesmos gritos de desespero. A morte, como ele nunca a vira.
E não era tudo: ainda se perguntava o que seriam as pequenas crateras, que divisava, no plano dos mortos, se abrindo para o que pareciam ser gretas de total escuridão, donde provinham gemidos e grunhidos mais bestiais e alucinantes.
Somente agora percebia como fora terrível, o ódio que os elfos brancos de Artamandöva tinham sentido e materializado, contra os meio-elfos de Erkandivär, durante os seis anos daquela que fora a pior das guerras entre os sencientes de todo o mundo. Só agora percebia; cometera um erro, indo àquele lugar.
Largou a alavanca da porta. Cerrou os dentes e voltou-se para a escuridão do corredor central. Decidiu ficar e, enquanto inúmeros pares de olhos sem vida lhe vinham na direção, ajoelhou-se – as costas para o portal secular – e usou a única magia, o único poder, o único dom que lhe podia socorrer, naquela hora em que sentia os umbrais da loucura a se lhe avizinharem: orou, como nunca fizera em vida...
Os olhos mortos se lhe achegaram rente à face; bocas lhe bafejaram odores de putrefação, por entre dentes quebrados e línguas cortadas; olhos ressecados despejaram sobre ele lágrimas de gélido torpor e mãos descarnadas lhe acariciaram a face contraída, entre risos de crueldade sem nome.
Pela primeira vez, em sua existência carnal, Kä’lim sentiu medo da morte e, entre orações aprendidas na primeira infância, entregou sua sanidade ao deus da misericórdia, para o qual jurara nunca recorrer.

sábado, 13 de abril de 2013

Tréplica ao Primeiro Bardo desta casa, sobre a questão do bardo morto.

O Primeiro bardo replicou-me a fala
sobre o bardo morto em mes já findado.
E deixou bem claro, sua voz não cala
o quanto discorda do que hei falado.

Dar-lhe a vez posso e posso dizer
que, de fato, "bardo" não é todo ser,
ainda que viva de canções e noites
e que dê à pena e ao cravo açoites.

Mas me pego a ver se não é qual no jogo,
se não é como quando se acende um fogo:
no jogo há os níveis ao nosso dispor;
no fogo, os diversos graus do calor.

O bardo hora morto eu creio que era
um bardo menor, de níveis modestos.
Fazia seus truques, sem ares de presto,
mas quanta era a gente que 'inda hoje o venera!

Sincero ele era; perdido, talvez;
no fim de sua vida escravo da peste
que assola a paz e contra ela investe
deixando sua marca de fel e morbidez.

Que os deuses do tempo e da eternidade
lhe deem descanso nas doces herdades.
Que os versos que ele deixou entre nós
sejam o legado de um fim tão atroz...

Personagens não óbvios [do mundo real e do irreal].

No RPG/D&D [não me venham falar de GURPS nem de outras absurdidades semelhantes...] ou na literatura de ficção os melhores mestres de jogo e os melhores escritores parecem optar pelos personagens não óbvios, aquele tipo de "pessoa" que não saberíamos classificar na escala do bem e do mal.
Há MJs e escritores que preferem o caminho mais fácil: quem é bom, é bom [clérigos, paladinos etc.], quem é mau é mau [vampiros, cavaleiros da morte, larões chefes de guilda etc.].
Mas pergunte a si mesmo quantas "pessoas óbvias", quanta gente totalmente, inteiramente boa você conhece, com absoluta certeza de quem são e de que são realmente e completamente voltadas para o bem? O mesmo para o mal, agora?
Este é um mundo de pessoas como nós, cheios de contradições, hora bons, hora nem tão bons assim, hora muito maus. Até Pedro, o líder dos apóstolos de Jesus teve suas contradições [mas não depois de se reconciliar com Jesus, depois de traí-lo...].
Este breve post vem apenas recordar que alguns dos personagens mais marcantes dos últimos anos, na literatura, no cinema e na História, são desta categoria: "eu e minhas contradições"...
Kitiara e Tanis Meio-Elfo, Raistlin. Dr. Gregory House... Tyrion e Jaime Lanister. Varis... Kvothe Arliden e Denna. Dexter Morgan? Não. Dexter é mesmo "do mal"... Abraham Lincoln? Churchill?
Assim, quando formos escrever e/ou "mestrar" temos de nos lembrar que somente os "anjos" são perfeitos. Nós, assim como a maioria do mundo, somos uma mistura de uma série de virtudes, vícios, gostos, concepções e decisões que nos tornam únicos [e não, eu não estou fazendo apologia aos nossos defeitos e vícios: estes devem ser combatidos em nós, para que possamos evoluir etc. etc. etc.].







A nota ao cair da noite.

Cai a noite neste mundo que nunca dorme.
Sentado na janela do segundo andar da casa, Lebert puxa uma nota no seu violino. Nenhuma canção será tocada, nenhum acorde planejado ou sendo construído. Ele toca aquele Fá pois, ao ouvi-lo, a madeira feliz torna-se púrpura aos poucos.
"- Toca aquela nota p'ra mim? Por favor?
 - Não sei se você merece...
 - Ok...vou ficar b'rava então!"

Só depois dela fechar a cara, Lebert entoava o Fá. O rosto dela sob seus cabelos castanhos, iluminados pelo sol, transmutando-se da raiva e da expressão fechada em assombro - ou assomb'ro, no impertinente vício de linguagem que ela tinha de encher a boca com os Pês e Bês antes da letra R - ao surgir do púrpura na superfície semi-espelhada da madeira feliz. "De novo! Até a cor ficar forte!" -  e podiam passar a tarde naquele ritual...Fá...Fá...Fá...
As vezes ela dizia uma cor e Lebert ficava tentando achar a nota correspondente no violino. Como a madeira feliz demora a reagir às vibrações da nota, o processo poderia ser frustrante. Algumas cores já sabia as notas correspondentes...outras nem tanto, ainda mais quando ouvia dela pedidos desbaratados do tipo: "Vermelho...mas não vermelho tipo da maçã e sim o da melancia por dentro, quase perto da casca!".
Sabia que era de propósito, mas não se importava. Quando ela se cansasse, lembraria que adorava o púrpura penetrante e pediria aquela nota novamente.
Naquela noite perdera a chance de dizer que a amava, fizera pouco das suas palavras e ainda saíra da pousada brigado com ela - "Não vás...porque não andamos perto do lago esta noite? Fica comigo, nada de bom há na taverna para ti!". E não havia mesmo. Cerveja e uma aposta idiota, e agora tudo que resta dela são Fás...
As lágrimas não brotam mais de seus olhos cansados de vertê-las, mas seu coração fragmentado se enche de pranto. Tudo são azares ultimamente, e nem o céu deste estranho mundo que nunca dorme ou silencia lhe consola com uma estrela ou outra. Ao menos a cidade parece ser o próprio céu, com o cintilar de suas luzes que só descansam ao nascer do sol.
Entre maravilhado com tudo de estranho que descobre e angustiado por ser um pária em um lugar ao qual não pertence, só lhe resta recolher-se a estes pequenos momentos para dar de beber à porção do seu coração que não se rende ao fantástico mundo novo.
Fá...Fá...Fá...

terça-feira, 9 de abril de 2013

Discordo...

Li, e discordo do segundo
Em ser inerente ao bardo
A queda frente ao fardo
Que é a tentação no mundo.

Sabe-se que a Terra oferece
Em suas ruas, bares, becos e salões
Farta, fácil, gama de opções
De prazeres que o corpo carece

Mas, a visão das várias partes do todo
Aliada ao bom senso e experiência
Dão ao bardo o poder e a sapiência
De preferir o bom prazer ao engodo.

Não é, amigo, intenção ser ferino
Tampouco, a ferro e fogo, classicista
Mas isso difere o bardo do vão artista
Sem, porém, o transformar em paladino...